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Thursday, January 03, 2013

OS BICHOS DE CASSIANO RICARDO



O GALO DAS CINCO HORAS

É um galo nítido, auto-suficiente,
Com uma clareza de clarim noturno.
Que deve ter a plumagem vermelha.
E cuja crista é a própria estrela d´alva.

Cantou muito esta noite, cantou muito.
Qual se tivesse, como de costume,
Uma coisa secreta pra dizer-nos.
Mais surpreendente do que a madrugada.

Há quantos séculos este galo canta?
Mas amanhece e a manhã é, apenas,
A face cor de rosa de um abismo

(seguinte) uma manhã que nunca chega,
E que promete, sempre, a mesma coisa,
Por só existir na garganta dos galos.

O BOI E O ARCO-ÍRIS

O boi,
Compacto, tranquilo,
Como se fosse o monumento
Animal do silêncio – boi santo –
Está pastando, agora.
O boi
De olhos mansos,
Esquecido de sua força incomparável;
O boi que inventou a democracia do couro;
O boi que não é rei pra abdicar de uma coroa
(mas que é muito mais, porque abdicou dos seus chifres
Agora ornamentais e inofensivos)
Está pastando a aurora.
O boi
Está pastando a aurora.
O céu do matadouro é quase azul-ferrete.
Ouve-se a sua respiração junto da relva.
Ouve-se o rumor, áspero e verde,
Do seu focinho, borrifado de orvalho.
Os gafanhotos saltam;
As borboletas se assustam,
Mas o boi se tornou inocente.
O boi,
Enormemente bíblico,
Está pastando a aurora.
E os próprios pássaros, que fogem do homem,
Lhe pousam no dorso.
Tamanha é a confiança que lhes inspira
A sua traquilidade.
O boi aqueceu o menino Jesus com o seu hálito
Numa noite de frio, e ficou santo.
Se os pássaros fossem, em verdade, inocentes,
Teriam que lhe viver pousados no ombro.
Caiu uma leve chuva sobre a relva
Mas o sol continua aceso.
O boi
Está pastando agora
- enormemente bíblico –
Sob um arco de aliança.

DEIXA ESTAR, JACARÉ

Jacaré da lagoa
Você nunca este triste.
Você tem tudo quanto quer.
Tem água boa, é dono da lagoa.
Vai ao cinema ver a lua tomar banho
Quando a lua parece, de tão nua,
Um corpo branco de mulher.
Você cresceu e as lagartixas e os lagartos tão bonitos verdolengos não cresceram...
Viraram bichos de jardim.
Só você, jacaré,
Foi que cresceu assim!
Mas olhe, escute uma coisa:
Quando a felicidade é tão grande
Que chega a passar da conta,
A gente deve desconfiar
Porque, como diz o povo:
Deixa estar, jacaré....
Lagoa há de secar.

CASSIANO RICARDO - Cassiano Ricardo Leite nasceu em 26 de julho de 1895, em São José dos Campos, São Paulo. Aos 16 anos publicou seu primeiro livro de poesias, Dentro da noite. Mudou-se para a capital para cursar a faculdade de Direito, mas concluiu o curso no Rio de Janeiro. Voltou para São Paulo, onde se engajou no movimento de reforma literária iniciado na Semana de Arte Moderna de 1922, do qual foi um dos líderes. Participou dos grupos Verde e Amarelo e Anta, com Plínio Salgado, Menotti del Picchia, Raul Bopp, entre outros. Na década de 30, junto com Menotti del Picchia e Cândido Mota Filho, fundou o movimento político Bandeira, em oposição ao Integralismo. Como jornalista e redator, trabalhou nos jornais Correio Paulistano, A Manhã e fundou as revistas Novíssima, dedicada ao movimento modernista, Planalto e Invenção. Sua poesia era caracterizada por um lirismo sentimental de cunho nacionalista, mas suas obras pós-anos 40 adotaram uma postura lírica, introspectiva e filosófica. Além de jornalista e poeta, foi um grande ensaísta. Publicou obras sobre os movimentos dos bandeirantes, sobre diversos autores e também sobre a própria literatura. Cassiano Ricardo pertenceu ao Conselho Federal de Cultura, à Academia Paulista de Letras e à Academia Brasileira de Letras. Recebeu diversos prêmios por sua produção literária. Faleceu em 14 de janeiro de 1974. Dentre suas obras de maior destaque, estão: A flauta de Pã, Vamos caçar papagaios, Martim Cererê, Um dia depois do outro, O arranha-céu de vidro, Poesias completas.

FONTE:
BRAYNER, Sonia (org.). Cassiano Ricardo. Rio de Janeiro/Brasília: Civilização Brasileira/INL, 1979.
CHAMIE, Mário. Palavra-levantamento na poesia de Cassiano Ricardo. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1963.
CORRÊA, Nereu. Cassiano Ricardo: o prosador e o poeta. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, Comissão de Literatura, 1970.
FERREIRA, Jerusa Pires de Carvalho. Notícia de Martim Cererê de Cassiano Ricardo. São Paulo: Quatro Artes, 1970.
MARIANO, Oswaldo. Estudos Sobre a Poética de Cassiano Ricardo. São Paulo: Livraria São Jose, 1965.
MARQUES, Oswaldino. O Laboratório Poético de Cassiano Ricardo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962.
MOREIRA, Luiza Franco. Meninos, Poetas e Heróis: aspectos de Cassiano Ricardo do modernismo ao Estado Novo.  São Paulo: Edusp, 2001.
RICARDO, Cassiano. A flauta que me roubaram. São José dos Campos: Julio Ottoboni, 2001.

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